"O professor tem que descer do pedestal". Uma das maiores preocupações dos pais modernos é se a internet vai prejudicar o aprendizado dos jovens. Para o professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutor em em Lingüística Aplicada, Marcelo El Khouri Buzato, o medo é infundado. A informação disponível na web pode e deve ser transformada em conhecimento, a exemplo do que acontece com os livros. Ele explica que negar o potencial positivo das novas tecnologias pode gerar um novo tipo de analfabetismo. Buzato destaca a importância do papel do educador nesse processo e diz que a hierarquia predominante nas escolas deve ser revista para que professores e alunos sejam parceiros em sala de aula.
Como o senhor define o termo letramento digital?
As discussões em torno dos temas inclusão digital e informática na educação usam uma metáfora chamada alfabetização digital. Ela é baseada na idéia de alfabetização, de que a pessoa analfabeta é incapaz de funcionar minimamente na sociedade, porque não consegue entender, progredir, estudar. A pessoa que não sabe usar o computador também é uma espécie de analfabeto. E saber ler e escrever é muito mais do que um código. Muita gente que passou pela sala de aula sabe mapear um poema, assinar o nome, copiar um texto, mas quando essas pessoas são chamadas a agir socialmente, através de um texto, não conseguem. Letramento é esse salto quantitativo. É um conjunto de práticas sociais que permitem a construção de sentido, nas quais os recursos digitais têm um papel importante.
Como isso acontece na prática?
A gente não tem que separar o que é digital do que não é digital. Quando eu compro um gibi na banca sei que para ser produzido ele passou por uma série de etapas digitais. Por outro lado, se o menino que compra o gibi se relaciona com o computador, a atitude dele e a maneira de ler vai ser diferente. Ele carrega uma prática social para outra. Por exemplo, uma pessoa que é analfabeta mas vive num ambiente culto tende a ter uma fala modificada, de tal forma que ela parece mais letrada. Dizemos que numa sociedade letrada, todo mundo acaba sendo letrado, mesmo quem não é alfabetizado. O mesmo acontece com o digital. Um jovem que assiste MTV vai observar que as vinhetas lembram um site. O formato da TV também é muito instantâneo, parecido com as práticas da web. Até quem não tem computador em casa se inclui nessa nova cultura, por meio da televisão ou dos relacionamentos.
Há quem acredite que o jovem tende a substituir a leitura de livros pela internet. O senhor concorda?
Primeiro temos que pensar o que é leitura, o que é escrita. As pessoas olham para o que está acontecendo agora na internet e para as atitudes do jovem com a visão do mundo antigo. Quando você vê um menino conversando no MSN, lingüisticamente não é possível distinguir aquilo como fala ou texto. O que temos nesse momento é um processo de hibridização, uma mistura. É possível ver isso em vários níveis. Na internet há artigos científicos escritos da mesma forma que no papel. Esses textos estão lá, convivendo com blogs, com MSN, Orkut, tudo misturado. Mas quando falo em hibridização, me refiro a essa linguagem que o jovem usa, que não podemos dizer se é oral ou escrita. Por outro lado, as pessoas estão lendo cada vez mais. Antes era uma dificuldade encontrar um livro específico. Hoje, tem gente que lê blogs o dia inteiro. As pessoas lêem mais, ler tem um sentido muito amplo. Quando um menino posta um vídeo no You Tube ou vai procurar um vídeo para relacionar com alguma questão da vida dele, ele está fazendo uma leitura. O conceito de ler e escrever também está em evolução.
Pesquisas já mostraram que ter computador na escola não melhora a qualidade do ensino. Por que isso acontece?
De que adianta ter computador na escola, se a professora chega na sala de aula, liga o computador, abre um arquivo de Word e passa um ditado? Essencialmente, a qualidade do ensino não melhorou em nada. Vamos imaginar que esse aluno conhece o computador, utiliza Orkut e MSN. Ele começa a ver que o professor e a escola simplesmente não são significativos. A escola não o prepara bem para o tipo de práticas sociais que o interessam. Nesse caso, ter o computador pode até piorar a qualidade do ensino. Além disso, se a escola está inserida numa comunidade onde as famílias são letradas, todos têm o hábito da leitura e os alunos têm horários para estudar em casa, a produtividade vai melhorar. Mas se a escola está numa comunidade onde a família não tem contato com a prática educativa, o fato de ter um computador na escola não vai representar melhoria no ensino.
Como deve ser a postura do professor, visto que o conhecimento dele sobre os recursos digitais, muitas vezes, é menor do que o do estudante?
Esse é o grande desafio. O professor tem que descer do pedestal e entender que vai lidar com uma coisa que ele não domina. Mas ainda é comum escutar frases do tipo: "eu vou passar um conteúdo para você" ou "as pessoas não estão assimilando ..." É como se o professor tivesse um conhecimento e esse conhecimento fosse estático. Ele age como se fosse uma torneira e o aluno um recipiente onde deve ser despejado o conhecimento. Professor, aluno e computador, juntos, deveriam promover práticas de letramento que fossem satisfatórias. Claro que para isso é preciso haver uma capacitação mínima. Em geral, a desculpa é que o professor não é capacitado, mas, muitas vezes, isso não é verdade. O professor está cansado de usar o computador em casa, acessar o MSN e o Orkut, passar e-mail. O problema é que ele só se sente valorizado e respeitado quando é a torneira e o menino um recipiente. O menino também já aprendeu a esperar o mesmo. O importante é que os dois sejam parceiros, entrem na internet para construir um conhecimento que é novo e para contratar discursos diferentes sobre o mesmo tema. O estudante não tem essa mentalidade de que o professor pode ser um parceiro e, de fato, não o respeita como tal.
Como essa parceria pode acontecer?
O professor não deve apenas reproduzir o conteúdo e o aluno não deve se importar unicamente com a nota. Mas também tem um paradoxo: o professor está numa instituição, num lugar de poder. Ele não precisa abrir mão do poder, mas aprender a operar esse poder de outra maneira. Veja um professor de doutorado. É impossível para ele entender de um assunto tão profundamente quanto as pessoas que ele está orientando. Mas o papel dele é dialogar, desafiar, orientar, aprender junto e nem por isso ele deixa de ser um professor. O perfil de aluno também muda. O estudante de doutorado não é como um adolescente que vai para a escola achando que o local é uma prisão, que o educador não sabe o que dizer ou não tem nada de interessante para falar. Essa atitude, do próprio aluno, é completamente errada.
Então, o professor pode aprender com o aluno?
Se o aluno quiser achar uma pesquisa com letramento digital, ele acha num minuto. Já o professor, muitas vezes, não entende o que é Google ou palavra-chave. Porém, uma vez que o estudante acha catorze textos sobre letramento digital, ele se pergunta o que esse conceito quer dizer, de onde veio, em qual fonte confiar, qual a importância que ele tem para sua vida. Esse conhecimento o professor tem. E que o aluno ensine o professor a chegar ao Google, com respeito.
É possível falar em democratização do acesso à informática?
Não existe uma barreira de gerações ou o mito de que as crianças nascem com o computador no DNA. Há, no entanto, uma diferença de interesses. Por exemplo, minha mãe tem 75 anos. Ela tem um filho programador, computador em casa e outro filho que fez pesquisa e trabalha com isso. Mas ela é incapaz de abrir um e-mail, porque isso não entra em nenhuma necessidade prática do cotidiano dela. Quando minha filha nasceu ela já me conheceu passando e-mail, utilizando o home banking e outros recursos digitais. Ela participou dessas práticas. Primeiro observando e perguntando, e aos poucos foi introduzida nessa nova cultura, de forma muito natural.
A tecnologia é tão nova nova para ela quanto o restante das coisas que ela está aprendendo ...
Exatamente, ela não faz essa distinção. Mas isso não significa que o mundo fora disso é descartável. Por exemplo, programadores do mais alto nível procuram livros quando querem aprender. Eles lêem da forma mais tradicional possível, depois procuram a internet, participam de fóruns de informática e tiram as dúvidas. A relação entre o antigo e o novo tem que ser de troca e colaboração. Não de subordinação e competição, como acontece hoje.
A linguagem utilizada na internet vai interferir na Língua Portuguesa, na sua opinião?
A linguagem se adapta à tecnologia. Os termos usados durante uma conversa por telefone não são os mesmos usados numa carta ou pessoalmente. Muito do que acontece na internet, só acontece porque é na internet. Mas há alguma interatividade. Quando falamos com alguém oralmente, utilizamos elementos da escrita. No rádio é comum ouvir que o governador disse, abre aspas... Isso pode acontecer com a internet. Mas não há necessidade para gritaria. A TV a cabo, por exemplo, tem uma sessão de filmes em que a legenda está em linguagem de internet, também há outdors voltados para o jovem com termos usados na web. Nesse sentido, já houve uma mudança. Mas pensar em alterações na gramática, no dicionário, no processo de escolarização, na imprensa e nos documentos oficiais é meio bobo. Até isso acontecer, historicamente, a tecnologia não seria essa, seria outra. O mouse, por exemplo, está desaparecendo com as novas tecnologias de toque. Quem sabe se o teclado vai existir nos próximos dez anos?
Como o professor pode ajudar o aluno a utilizar corretamente a linguagem de internet e as regras gramaticais?
Às vezes, nas redações escolares, as crianças trocam a palavra bom por "baum", termo usado na web. Há quem diga que as pessoas já não sabem ler e escrever e que a internet está acabando com a pouca ortografia que o professor conseguiu ensinar. Isso é uma maneira de olhar. Outra forma de olhar é a seguinte: A criança não é nativa desse novo mundo? Para ela isso é mais ou menos como dizer mandioca ou aipim. Na sua ingenuidade, ela acha que a professora vai entender da mesma forma. A escola precisa saber como lidar com isso, sem massacrar a criança. Mas não adianta esperar que seja um conto de fadas, haverá conflitos de poder.
Saiba mais sobre Marcelo Buzato
Currículo. Marcelo El Khouri Buzato é doutor em Lingüística Aplicada e professor do Departamento de Lingüística Aplicada da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Ele coordena o projeto Práticas Fronteiriças na Inclusão Digital
Trabalhos. Ele é autor de vários trabalhos, entre eles "Letramentos Multimodais Críticos: contornos e possibilidade" - Revista Crop (2006); "Inclusão Digital como Invenção do Quotidiano: um estudo de caso" - Revista Brasileira de Educação (2008); e "Letramento e Inclusão: do Estado-nação à era das TIC" - Revista DELTA, 2009.
FONTE:http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2012/03/noticias/especiais/guia_da_nova_ortografia/2012/1132087-entrevista--Acesso em 23?07?2014