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27 de setembro de 2014

O valor dos procedimentos no trabalho em arte



Artigo | Monique Deheinzelin

O valor dos procedimentos no trabalho em arte





A arte, como um desenho, uma pintura ou uma escultura ganham existência? O como da pergunta indica um plano procedimental na criação de algo que, para vir a se tornar um objeto, depende de nossa ação. Nas crianças, o pensamento sensório-motor caracterizado pelo binômio sentir e agir está na gênese do conhecimento. Afetos, emoções e sentimentos, ao mesmo tempo, desencadeiam ações internas e externas e são transformados por essas ações, o que nos habilita a dizer que as ações transformadoras têm sempre uma mobilização estética. Durante o período sensório-motor, essa mobilização estética possibilita a sobrevivência em uma gama de aprendizagens que constituem, simultaneamente, conhecimento de si próprio e do mundo. É a dinâmica desse movimento entre o mundo interno e o externo que está na origem da criação de todo conhecimento. E a nossa mobilização estética, a mola propulsora desse movimento e o seu regulador, rege e baliza a criação. Em arte, estética é propulsora da ação e não atribuição do belo a algo pronto. 



Para compreender como se dá essa ação, propusemos a crianças de 1 ano e meio a 10 anos a geração de novas cores com base nas primárias: azul, amarelo e magenta. A proposta realizada com as crianças na creche Casa do Aprender, em Osasco, região metropolitana de São Paulo, abriu um universo de possibilidades - brincando com as cores, elas revelam o segredo da criação. A gênese da pintura em seu trabalho autorregulado e disciplinado aparece como uso da cor que é fenômeno, ritmo do gesto com pincel, a fluidez da tinta com mais ou menos água. A implantação da imagem no branco do papel deve-se a coordenações cognitivas sucessivas e simultâneas: geração de novas cores, pinceladas que envolvem as anteriores, ajuste dos materiais para as necessidades expressivas de cada um. Na observação de Pedro, de 5 anos e 3 meses, torna-se compreensível como ele se afeta e expressa pela cor. Em seus procedimentos com a cor - pintar/ combinar/ retocar/ misturar/ criar tonalidades/ relacionar -, Pedro articula jogo de exercício - repetição/ prazer funcional/ exploração lúdica e jogo simbólico -, criação e atribuição de sentido a uma imagem. 



Quando as crianças, como no exemplo de Pedro, se entregam à experiência completa ou estética (DEWEY, 2010) - cor, ritmo e coordenadores cognitivos -, tornam observável a gênese da pintura em uma sequência de ações que têm valor de conhecimento. Em possíveis equivalências - cor e fenômeno; ritmo e ação; coordenadores cognitivos e forma; e experiência estética e energia -, esses observáveis são quatro móbiles da ação extensivos a outras áreas de conhecimento, que sintetizam e configuram um círculo de aprendizagem e geração de conhecimento, conforme as etapas esboçadas a seguir. 



Uma criança com sensibilidade, intuição e imaginação (sujeito da ação), devido a uma mobilização estética inicial (afeto) e balizada pela emoção que garante a continuidade entre a vida e a arte, gera uma experiência estética sensível ou completa. Essa experiência acontece em intuições de espaço e tempo. A experiência estética ou sensível pode ser considerada um jogo, no qual o sujeito cria procedimentos (COLL, 1996) - passos concatenados da ação - em busca do êxito: atender a demanda por expressão da mobilização estética inicial. Os procedimentos geram um objeto, algo que ganhou existência fora da criança. O que gerou uma pintura é agora conhecimento, um modo de ser do indivíduo que torna observável a experiência de pintar na qual esteve subjetivamente, esteticamente, implicado. 



O problema educativo que se coloca é a fragilidade no modo de produção de objetos artísticos, quando deparamos com questões difíceis para a criança ou para quem trabalha com arte, que só podem ser resolvidas no plano procedimental e interativo. Se o sujeito se afasta de sua base estética, não chegará ao êxito expressivo, não haverá transformação, não haverá aprendizagem e o desapontamento será geral. Nesse caso, o que pode ser considerado uma representação incompleta, insatisfatória, para quem a produziu? Aquilo que não tem verossimilhança com o fenômeno ou a realidade que motivou a necessidade de se expressar. Não será verossímil ao afeto que mobilizou a ação, e talvez corresponda a uma imposição de representações externas tanto à realidade observada quanto ao modo de ser e de pensar do sujeito. Pode ocorrer então um empobrecimento da experiência e da abertura de possibilidades originárias da interação entre sujeito e objeto. A potência da experiência estética vem da energia que alcança o êxito expressivo: o que ganhou existência corresponde à emoção afetiva que o gerou. Tudo que ressalta de nossas conclusões é a importância da experiência e dos procedimentos na gênese do conhecimento. Para tanto, devido à continuidade funcional (DEHEINZELIN, 2010), o que propomos como fonte da criação é a manutenção, o enriquecimento e a transformação do pensamento sensório-motor ao longo da vida.


1 Este artigo é parte integrante da tese de doutorado em Psicologia e Educação, Móbiles da Ação: Da Cor à Experiência Estética. São Paulo: Faculdade de Educação da USP, 2013

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